sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

génese



o Norte sente-se, impõe-se, marca-nos. por mais que nos afastemos do seu centro de gravidade, somos inevitavelmente afastados para o seu núcleo por uma corrente invisível que nos atrai, como a terra, as gotas de água; como o íman, a agulha; como o sangue, o sangue; como o desejo, o desejo.

no Norte está a minha origem, escondida no primeiro olhar de amor dos meus avós, no primeiro contacto das suas mãos. o projecto do que eu seria concretizou-se com o nascimento da minha mãe. tive apenas de esperar que o desejo dela se unisse ao do meu pai para ser inevitavelmente atraída para este mundo.

em que momento o poderoso olhar do Norte se uniu ao do mar? porque a outra metade da minha origem provém do mar. da origem da origem. o meu pai nasceu ao pé do mar. aí, diante das ondas verdes, o desejo dos meus avós tornou-se uno para lhe dar entrada neste mundo.

quanto tempo demora o desejo a enviar o sinal correcto e quanto tempo passa antes de chegar a resposta esperada? as variáveis são muitas, o que é inegável é que todo o processo começa com um olhar. ele abre um caminho, uma vereda sugestiva que mais tarde os amantes percorrerão sem parar.

laura esquivel

2 comentários:

  1. Poema dos passarinhos antigos

    Era um par de jovens. Ela e ele. Ambos jovens.
    Alegremente cantavam as canções dos jovens
    e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos jovens.
    Como jovens que eram riam-se das pessoas antigas por já não serem jovens,
    por não saberem dançar as suas danças de jovens,
    por não saberem cantar as suas canções de jovens.
    Mas num dia em que os seus olhos se encontraram de certo modo,
    sentiram nos seus corpos um estremecimento antigo.
    As células antigas dos seus corpos jovens estremeceram.
    As palavras de amor saíram-lhes da boca
    pressurosas e múltiplas,
    como as pequenas bolas de sabão
    quando num tubo estreito são sopradas.
    E juntamente com elas sairam passarinhos leves,
    passarinhos antigos,
    tão leves como as bolas de sabão,
    e os passarinhos iam debicar nos lábios de ambos,
    e os lábios intumesciam-se, vermelhos e macios como polpas,
    e os passarinhos roçavam a penugem do peito pelas pálpebras deles
    com os bicos alisando as sobrancelhas,
    e aninhavam-se entre a carne e a roupa
    batendo as asas num saber antigo.
    Quando acordaram e quiseram sacudir o pó do tempo
    ouviram o riso dos jovens que se riam das pessoas antigas,
    e alegremente cantavam as suas canções de jovens
    e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos jovens.

    António Gedeão

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