terça-feira, 28 de setembro de 2010

traços humanos 6



lunch time rush hour, centro comercial à pinha, gente de tabuleiros na mão à procura de mesa onde os assentar, muitas mesas vazias rodeadas cada uma de uma cadeira ocupada, a "guardar" a mesa vazia. três amigos brincalhões, tabuleiros na mão, sentam-se numa mesa limpa e guardada por senhora zelosa.

a senhora abriu muito os olhos, e logo de imediato os braços, e reclamou que a mesa estava ocupada. os rapazes riram e disseram que sim, que estava, que tinham acabado de sentar-se, mas que a senhora não os incomodava, podia ficar, e um ofereceu uma batata frita do macdonald, porque a senhora parecia "fraca de fome".

adicionando indignação ao zelo, a senhora recusou, e manteve-se sentada, impotente, enquanto os rapazes comiam e riam de mil coisas, situação incluída. a certa altura, a senhora avançou que as amigas iam ficar aborrecidas, por não terem onde se sentar, e os rapazes aconselharam-na a procurar uma mesa vaga, porque aquela, como a senhora tinha dito, estava totalmente ocupada. "e a batatita, não vai?".

as amigas da senhora não ficaram aborrecidas, porque quando chegaram, estavam os rapazes a levantar-se, satisfeitos e brincalhões. ao deixar os tabuleiros nos carrinhos de limpeza, sentiram as orelhas quentes, e repararam que a guardiã da mesa gesticulava dramaticamente, rodeada da concordante indignação geral das amigas.

p. s.- um outro texto acerca do mesmo assunto, aqui

traços humanos 5



avião pequenito, tempo bom para voar.

sentada no banco ao lado dele viajava uma senhora, cinquentenária de aparência, muito nervosa, terço na mão. conhecida da tripulação, já lhe tinham vindo contar umas anedotas, dizer umas tolices, para lhe moldar o ânimo, disso mui necessitado. ele, bem disposto, pôs a boa disposição em generosidade, e meteu conversa: quem era; onde vivia; ah, então conhece fulano; e beltrano, também não?; e que é feito do ti jaquim, ainda vai pescar?

a vizinha de voo gostou muito da companhia, mas de cada vez que o avião se perturbava, ela benzia e dizia uma pequena oração silenciosa, antecedida de um "ai, meu deus" muito baixo, mas perfeitamente audível.

traços humanos 4



a olhar para a janela. ao longo do dia, umas horas a olhar para a janela.

cresceu no campo, horizontes distantes, mundo sem limites físicos visíveis, com a vida pela frente. agora, não vê para além do prédio do outro lado da rua, e isto só quando o camião de mudanças não lhe estaciona na vista.

que pensa uma velha que olha para o mundo que passa sem lhe ligar? deve ser bom poder pensar que se orgulha do percurso que andou, pensar nas pessoas que amou e a amaram, nos gestos que teve e lhe tiveram, nos filhos e netos que embalou e (ou)viu rir, no que construiu, ou cozinhou, ou pintou, ou escreveu, ou comeu, ou viu.

deve ser brutal se apenas vir o
prédio do outro lado da rua, e isto só quando o camião de mudanças não lhe estaciona na vista.

undo



eu trabalho muito com um programa de desenho, autocad, sendo cad as iniciais de computer aided design, ou algo semelhante.

um comando muito confortável que o programa tem é o "undo", que, descrito sucintamente, desfaz o que foi feito imediatamente antes. o word também tem o comando, tal como outros programas, mas no autocad é mesmo muito confortável, porque na fase de projecto desenhamos a mesma coisa várias vezes, até chegarmos a uma solução satisfatória, daí o valor de desfazer as que não nos satisfazem.

e desta última frase vem o motivo do post de hoje: seria excelente se pudéssemos ter tal comando na vida real.

deixamos cair algo,
"undo"; enganamos-nos na saída da autoestrada, "undo"; escolhemos mal no menu da cantina, "undo"; levamos uma bofetada depois de beijarmos uma miúda apetecível, "undo"; dizemos algo de que nos arrependemos enquanto ainda estamos a falar, "undo".

o comando seria utilizável apenas para eliminar o último acto praticado, não para arrependimentos antigos (usar mas não abusar). um fulano tem de aturar as asneiras antigas decentemente, não se foge dos erros passados, resolvem-se.

mas seria justo um comando
"undo", e muitas vezes me lembro disso, quando faço uma burrada

domingo, 26 de setembro de 2010

sorry, stupidity is overrated



acho que já escrevi desta pessoa aqui, é um cliente meu cujo trabalho me foi penoso de fazer, por motivos de estupidez dele: estúpido ter-se colocado na posição que colocou, uma dificuldade tremenda em perceber que se colocou nela e em perceber a solução que eu propus (solução que, para além de ser a única eficaz, tem aroma de genialidade (má), por ver o problema fora das fronteiras do problema).

eu já tinha mudado a opinião acerca dele, e quando fui esta semana entregar-lhe o trabalho, rendi-me de vez.

como me apontaram, o fulano confiou em mim desde o início (mesmo sem perceber a minha razão), deu todos os passos que lhe indiquei (e ficaram-lhe caros), aturou o meu mau humor repetidas vezes e, no final, depois de pagar a horas (coisa mui rara), pediu desculpa (pelo incómodo, por ser chato).

ele passou uma fase má, divórcio, fala demais, não se cala com detalhes básicos, repetidos, inócuos. mas é um homem bom, bom fundo e boa superfície, decente, sincero, franco no modo como se me entregou. e sinto-me culpado, agora, por não ter gostado dele.

uma amiga minha tem na estupidez o pior defeito que pode encontrar em alguém, o menos desculpável, o mais aborrecido. sorry, my friend, stupidity is overrated.

p. s.- outro aspecto que me incomoda no percurso de não ter gostado dele até hoje, em que gosto, é não ter sido eu capaz de fazer esse percurso solo, necessitei de ajuda, de quem me dissesse, como eu disse tantas vezes a tantas pessoas, acerca de tantas pessoas, que ele é um homem decente, e que eu não o estava a ser com ele.

traços humanos 3 (e 3a)



"mais que obscenos, são estúpidos...", continuava o rapaz, no cume da indignação, "... se pensam que os porches e os ferraris e os maserattis lhes conferem estatuto, são completamente idiotas".

a rapariga ouvia enternecida, rendida, apaixonada, e ele continuava, "a única coisa que confere elevação humana são aspectos morais, intelectuais, valores que não se compram, imateriais, intangíveis."

a conversa prosseguiu nestes moldes minutos mais, até o rapaz serenar. de cansaço, talvez. para saborear o efeito das palavras, mais provável.

então, ela, profundamente enternecida, candidamente perguntou, em jeito de recompensa pela elevação dele: "que achas do meu piercing novo?", e mostrou o umbigo.

a resposta desiludiu profundamente o senhor da mesa ao lado, que ouvia a conversa quase tão enternecido pelo verbo dele como a menina do umbigo perfurado: "gosto, dá-te personalidade".

......................

p. s.- se a história anterior é baseada num facto verídico, ocorrido há anos, a que se segue (supostamente "traços humanos 3a") é a inventada continuação da conversa de esplanada (e é inventada porque o senhor desiludido na mesa do lado não acompanhou o jovem casal até casa dela, antes dos pais chegarem).....

deitados, ele observava e acariciava o piercing novo dela, no umbigo transpirado. ela observava-lhe o gesto terno e acariciava-lhe o cabelo. excepto pelas respirações ainda aceleradas, silêncio.

sexo poderoso, dramático, ele tinha gritado dois orgasmos e estava orgulhoso. ela, não tendo tido nenhum, tinha tido três.

estavam ambos muito felizes e satisfeitos, até ouvirem a chave entrar na fechadura.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

traços humanos 1



pré scriptum- ciclo novo, acerca de pequenas arestas humanas, de nenhum ninguém em particular. take it away....

à noite: "amanhã vai chover". manhã seguinte, sol.

noite seguinte: "amanhã vai chover". manhã seguinte, novamente sol.

ainda outra noite: "amanhã vai chover". manhã seguinte, outra vez radiosa.

cada nova noite, a velha previsão: "amanhã vai chover". eventualmente, chove de manhã: "eu não disse? eu nunca falho".

traços humanos 2



"porra", e levanta-se da cama, aborrecida, "estou atrasada".

o banho leva quase o tempo do costume, enquanto ele arranja o pequeno almoço, ralado com o atraso dela.

minutos depois, jeans vestidos, a rapariga olha estática para o armário repleto de roupa. o rapaz, deitado inocente na cama, enquanto lhe admira as costas nuas, admirado com a imobilidade, "não estás atrasada?".

"estou completamente bloqueada", e continua a olhar longamente a roupa pendurada, de costas nuas.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

momentos de sorte



andei a juntar pensamentos acerca do assunto sorte:

por causa do trabalho que dá: dá muito, disse um dia o professor moniz pereira.

por causa das correntes em emails: imagine-se o absurdo de uma em que fosse necessário reenviar o email da sorte a uma data de gente, para ganhar o totoloto ou euromilhões. se funcasse, naquela semana haveria tantos vencedores que o 1º prémio seria algo a rondar os 13 euros e 7 cêntimos.

por causa dos jogos de azar: como esperar ter sorte?

por causa das marés de sorte: que raio de lua as influencia?

por causa de primazia de escolha: imagine-se uma pessoa que tem a sorte de poder fazer uma primeira escolha, e escolhe mal. foi má sorte, ou apenas má escolha?

por causa de encontrar dinheiro na rua, uma nota gorda: que falta faz a quem a perdeu?

por causa do dizer "sorte ao jogo, azar ao amor": strip poker?

por cauda da sorte de uma pessoa azarada: "se não tivesse má sorte, não tinha sorte nenhuma".

domingo, 12 de setembro de 2010

esparrela



"para mim, o dinheiro não conta, para mim, o mundo fica-me apertado", esparrela stilton.

personagem fabuloso do mundo do famoso rato gerónimo stilton, de quem é primo irreverente, esparrela é o protótipo do free living, rato que não dura nos trabalhos (chegou a abandonar um de provador de queijos, por se ter aborrecido, e um de fazer pizzas, por ser um trabalho chato (perceberam? pizzas, chato, eheheheh)) e implica com o primo gerónimo por este se dedicar demais à gestão do "diário dos roedores", publicação líder em circulação em ratázia, a partir de uma sala que o esparrela acha bolorenta.

parênteses (eu não sei de vós, mas eu tinha durado no emprego de provador......).

dinheiro é importante (quando não há, importância overrated, quando há), e o personagem chama-se esparrela por motivos evidentes, mas é gostoso ler que os putos continuam a ter convívio com personagens assim (como a nossa cigarra cantora, que cantava enquanto a formiga (ráisaspartamatodas) trabalhava), que arriscam um modo de vida sonhador, porque isso nos permite discutir com eles (filhotes) opções de vida e ir além da omnipotente "competitividade".

p. s.- existe uma versão alternativa da história da cigarra e da formiga, em que esta, depois de passar o verão a armazenar e a ouvir a cigarra cantar, vê aproximar-se a cigarra e pensa: "lá vem ela cravar comida, preguiçosa, é sempre o mesmo". a cigarra vem animada, desta vez, conta que vai para paris, dar espectáculos no maxime, contracto fabuloso, montes de luxos e regalias, e pergunta à amiga se quer algo da cidade das luzes. a formiga, danada, pede-lhe um recado para o la fontaine: "que se vá $%#/*+.....".

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

uma manhã no tribunal



















pre- (ando há algum tempo com ideias de fazer uns post´s com estrutura diferente. acho que tem a ver com o facto de estar numa fase de arestas boleadas, menos "sharp" (suponho que quando a vida nos trata bem, corremos o risco de a apreciar comodamente, nos acomodarmos, o que leva a que sejam as adversidades que nos induzem o génio), e o que tenho escrito leio-o pouco profundo, algo redundante).

na quinta passei a manhã no tribunal, fui afiançar que determinada pessoa decente é realmente decente. acontece-me estar em determinado local ou situação e sentir necessidade de sair, fazer algo externo ou estranho ao local ou situação. vai daí, nas horas de espera fiz algumas fotografias no átrio do palácio de justiça.....