quarta-feira, 27 de outubro de 2010

traços humanos 8



(na minha rua, onde há uma associação de cegos)

carro de gama, estacionado em cima do passeio estreito,
dois fulanos nos bancos da frente, à lord.

a descer a rua desce uma senhora cega (invisual para quem preferir), bengala a conhecer o lancil do passeio, bem conhecido de tanto lhe tocar os limites. chega ao carro dos lord's, que não costuma estar ali quando ela passa, e bate-lhe com o bastão.

irritada por ter de abandonar o passeio (que o carro tomou ao estacionar), contorna o carro sempre a bater-lhe, literalmente, enquanto insulta o condutor, sem saber se ele lá está (está, e acompanhado, mas faz de ausente).

a cega bate no carro com fúria de desrespeitada,
talvez mais de dez bastonadas valentes, plenas de honra, todo o percurso que tem de o contornar, pelo alcatrão, e bate-lhe com desejo de atingir o condutor que não sabe estar lá dentro e não saiu, nem ele nem o colega.

(parênteses: li um comentário a um livro de miguel rocha, em que um agente da pide era vilipendiado no final, comentário que afirmava algo como "sentimo-nos vingados (pelo final em que o pide é penalizado)". acho que todos na rua nos sentimos de certo modo vingados dos abusos de quem estaciona no nosso caminho, só porque acha que pode, sem ter coragem de responder quando chamado).

Sem comentários:

Enviar um comentário