sexta-feira, 8 de outubro de 2021

a escora do Olívio










acerca do que a vida pesa, mas antes vou explicar o Olívio.

o Olívio, que não vejo há meses, é um carpinteiro, de estalo, e não é pior como humano: calado (não silencioso, trazia uma coluna que tocava funanás, e, menos, mornas), focado, iniciava o dia em velocidade de cruzeiro.

(eu não sou assim, mas tive um amor (daqueles para sempre) / amante / namorada que era, acordava-me cedíssimo, fazíamos amor, eu ficava a dormir, e ela, quando eu finalmente levantava, já tinha feito milhões de coisas).

voltando ao Olívio, certo dia, era dia de instalar armários altos, numa cozinha, uns especiais, feitos por medida, com frente redonda, dois deles faziam a parede toda, pesadões, com um design fabuloso.

Olívio, da minha altura, não se intimidou, e não ligou muito às minhas preocupações. tirou umas medidas, foi apanhar duas peças, cortou-as como lhe pareceu bem, e colocou uma delas na aresta das paredes.

depois foi apoiar o canto do primeiro armário, escorando-o, ali, colocar a segunda escora no outro extremo, marcar furos, furar e aparafusar. dois caga-tacos, eu e ele, fizemos aquilo sem grande esforço, só levantar e equilibrar.

voltando ao que a vida pesa, ela pesa de modo diferente a cada alma.

a mim, já pesou (de)mais, de simplesmente estar vivo implicar mero sofrimento. ainda pesa, ainda dói, mas já não só.

o que faz o "já não só", o que diminui / dilui o peso da vida, são escoras.

são pessoas, das que amamos para sempre às que passam num momento e escoram com um sorriso, ou um odor, ou uma gentileza.

são ideias de um mundo melhor, mais decente (que tanta vez parece fugir, mas nunca fora de alcance), que outras pessoas partilham.

é a arte, venha como vier.

hoje foi ler estórias de alguém, a quem a vida pesa talvez mais, talvez menos do que a mim.

e um cidadão sabe que não está sozinho, que há mais de nós. e, também por isso, continua.

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