um conto de pushkin que adoro conta a história de um duelo. para abreviar, evito relatar as circunstâncias que o motivaram e outros aspectos irrelevantes para o que quero relatar.
focando, o duelo dá-se entre um militar, homem de coragem extrema, admirado por todos os colegas, e um conde, jovem irresponsável e irreverente. à hora marcada, manhã fria de inverno russa, espera sílvio (o militar) pelo jovem, que lhe aparece atrasado, casaco sobre o ombro, por vestir e chapéu cheio de cerejas, que vai comendo, cuspindo os caroços em direcção ao adversário.
tiradas sortes, tem o conde direito ao primeiro tiro, que dispara displicente, erra. furioso, sílvio tem a vida dele nas mãos, é um atirador exímio, impossível errar. mas algo se passa, o conde continua a comer cerejas e a cuspir os caroços. percebendo que o conde não teme o disparo, despreza a morte, sílvio recusa disparar, com argumento de que o jovem "está a tomar o pequeno almoço e seria indelicado interromper". o conde insiste, deixa-o à vontade para atirar, mas de que adianta atirar sobre alguém que nada teme, por nada valorizar do que tem? recusa o disparo, ao que o adversário responde que está à sua inteira disposição para quando o quiser efectuar.
anos passam-se, o conde casa, ama a mulher, vão passar núpcias ao campo, propriedade condal. voltando de um passeio equestre, o conde é avisado que uma visita o espera no salão, para lá se dirige, abre portas e vê sílvio, que vem reclamar o direito ao disparo. homem de palavra (que bem ficaria a muita gente entender o conceito), mede a distância e aguarda o tiro. incapaz de atirar, sílvio recusa de novo, tratar-se-ia de um mero assassinato.
tiram novas sortes e de novo ganha o conde. nervoso, de novo erra, acerta num quadro, pendurado na parede. alertada pelo ruído, a jovem noiva entra no salão, vê o marido na mira do adversário, chora, implora pela sua vida. o noivo roga-lhe que tenha um comportamento digno (repito-me, que bem ficaria a muita gente entender o conceito) da situação e ambos aguardam o disparo.
sílvio saboreia o temor do adversário, prolonga a ocasião. a bela condessa chora, o marido insurge-se contra a demora, que dispare, o prolongar apenas serve para martirizar a mulher, contra a qual sílvio nada pode ter.
pela última vez, sílvio recusa disparar, desta vez com argumento de que o viu tremer, com medo de perder algo importante, dado ter então algo importante a perder. dá por encerrada a desavença que originou o duelo e, ao sair, dispara a pistola, colocando a sua bala sobre a do conde, no quadro, na parede, tiro magnífico.
as duas imagens que me fascinam nesta história são a sobreposição das balas e o chapéu cheio de cerejas, caroços cuspidos displicentemente. sempre me interroguei o que seria não ter nada a perder, hoje sei.
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