domingo, 15 de fevereiro de 2009

papillon



em miúdo, lia muito. tanto que os meus livros acabavam depressa, e eu lia os do meu pai. destes, houve três que me ficaram até hoje, de formas diferentes: o "ivanhoe" (que lia como se escreve, à portuguesa),
de walter scott, de que falei em post recente; "a romana", do moravia, que me iniciou na volúpia (imaginária) dos corpos femininos; e o "papillon", de henri charrière. é acerca deste o post de hoje, porque estava em falta.

li-o há muito, era puto, aos 10 ou 12 anos. nessas idades estamos a começar a escolher caminhos, e eu tive sorte (e mérito, digo) de ter encontrado e absorvido excelentes provocações, em cada fase dessa(s) escolha(s).

o livro é acerca de um marialva, papillon (se não me falha a memória, porque usava um desses acessórios, entretanto em desuso), que foi indevidamente acusado (um testemunho falso) de ter morto alguém, e injustamente condenado a reclusão perpétua. ora ele era francês, e nessa altura eram desterrados para guianas francesas e afins, trabalhos forçados, violências e violações, mortes e abusos.

o livro conta o relato dos muitos anos que esteve preso, das várias fugas que protagonizou, de relações de amizade e ódio com outros presos e carcereiros, de períodos que viveu em liberdade, entre fugas.

parênteses (penso que fizeram um filme, com o dustin hohman, mas posso ter sonhado. por vezes, sonho coisas que me parecem reais, e vem a ver-se, não são).

guardo do livro algumas coisas:

uma personagem, um rapaz, maturette (ou algo semelhante), condenado juntamente com o irmão por assassínio. como nenhum denunciou o outro (fraternidade), foram ambos condenados a perpétua. do irmão não recordo mais nada, mas maturette participou numa fuga com papillon, admiração mútua, e recaptura também mútua. era frágil fisicamente, mas poderoso mentalmente, inquebrável. e homossexual, por natureza. havia muitas relações homossexuais entre detidos (consta que ainda há, razões de necessidade). numa altura, depois de recapturados, um dos presos veio perguntar ao papillon se era amante de maturette, e não o sendo, se se importava que ele o fosse. como se estivesse a pedir a mão do rapaz, ao tutor...;

inesquecível a descrição de um pastor de vacas, recluso, que se satisfazia com uma delas, e durante uma exposição, vacas alinhadas, passa o pastor e a namorada vira-se e oferece-lhe a retaguarda...;

recordo a fuga final, de uma ilha. ele salta de um penhasco, montado sobre um saco cheio de cocos (a fazer de bóia) e tem de saltar sobre a sétima onda, para que o recuo dela, maior, lhe permita sair da corrente;

outra coisa que guardo foi um período em que papillon esteve livre, numa qualquer aldeia indígena, de pescadores, ou mergulhadores. apareceu desfalecido, cuidaram dele, restabeleceram-no e integraram-no. sem perguntas ou reticências, apenas um ser humano que foi recebido por outros, em comunidade. ele acabou por construir família, mulher e filhos, que deixou, por um desejo de vingança que não controlava;

foi essa obstinação com a injustiça que lhe fizeram, que lhe permitiu sobreviver todos os anos e a todas as privações. enquanto odiou, se quis vingar, papillon sobreviveu a tudo, foi um homem completo, o homem que quis ser, nas condições em que estava, respeitado por todos, e por si mesmo antes de todos. mas quando a vida lhe apareceu à porta, não a pôde viver, deixou-a para trás. vários anos de reclusão passaram, até à fuga nos cocos. nessa altura já ele sabia a diferença entre viver e sobreviver, e permitiu-se viver, criar nova família, desprezar quem o tinha injustiçado.

é por ter aprendido isso, com o papillon, que desprezo melhor do que odeio.

1 comentário:

  1. Si há um filme com o Dustin Hofman, mas muito soft relativamente ao livro.

    sem mais nada a acrescentar... porque realmente o livro mostra, como é fácil aprender a viver sem rancores, o caminho é que tortuoso.

    JB

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